Controladoria Pública: reflexões, desafios e possibilidades

Francisco Eduardo de Holanda Bessa (1)
Marcus Vinicius de Azevedo Braga (2)

O termo Controladoria não é objeto de uma compreensão pacificada e universal, seja no setor privado e especialmente no setor público. Na área corporativa, o termo passou a significar a estrutura organizacional responsável por compilar as informações contábeis e dar-lhes significado gerencial, ou seja, orientado ao processo decisório. Uma decorrência, inclusive, dos avanços da função contábil.

Boa parte das publicações acadêmicas ainda hoje referencia a Controladoria no ambiente corporativo como uma derivação da área contábil. Trata-se, portanto, de uma área “filha” da Contabilidade, mas que não está ocupada em organizar as demonstrações obrigatórias de acordo com regras societárias, mas sim em dar-lhes formato aberto, livre de amarras de estruturas conceituais, apurando índices que mesclam dados financeiros e contábeis com dados operacionais.

A Controladoria corporativa é basicamente uma área que lida, organiza, tabula, compara e cruza todo o conjunto de informações produzidas pelas áreas de negócios e de processos. Faz, portanto, projeções, constrói cenários, estressa indicadores críticos e acaba por ter certa ascendência e influência sobre as demais áreas de uma empresa.

A transição do termo para o setor público não guardou necessariamente esse mesmo DNA corporativo. Ainda que a função de controle interno no setor público não seja nova, datada formalmente de 1964, e tenha sua gênese fortemente ligada a própria função contábil, nesses mais de cinquenta anos a agenda se diversificou de forma temática, se tornando mais complexa e abrangente, e nesse movimento, surge o termo Controladoria no setor público como uma cria do presente século.

O uso seminal do termo no setor público remete à criação da Controladoria-Geral da União, sucedânea da Corregedoria-Geral da União, criada ainda em 2001(3). De largada, uma distinção essencial em relação às controladorias do mundo corporativo: em sua gênese, a Controladoria-Geral da União, estruturalmente, surge da fusão de funções dispares, albergadas sob o mesmo chapéu, fruto desse processo de assunção de responsabilidades derivadas de mudanças no país e no mundo.

Em 2003 se estabeleceu o modelo de estrutura que segue até os dias atuais, com algumas alterações incrementais. Em seu nascedouro, como Controladoria-Geral da União, o órgão da estrutura do Poder Executivo era composto basicamente pela Corregedoria-Geral da União, Ouvidoria-Geral da União e Secretaria Federal de Controle Interno (SFC), mesclando ações de responsabilização de servidores, de interlocução com as demandas da população e ainda, de realização de auditorias, juntando na mesma mesa questões jurídicas, contábeis e da gestão das políticas públicas.

Em 2006, para dar conta dos desafios de uma nova agenda de fomento à transparência e à prevenção da corrupção, é posicionada uma nova unidade na estrutura, focada nesses temas. Finalmente, em 2019 é criada a Secretaria de Combate à Corrupção, com a adição de mais uma função (derivada das auditorias de viés mais investigativo), mostrando a plasticidade e capacidade de adaptação desse chamado “modelo controladoria” que, nesses quase vinte anos, foi objeto de mimetização pelos estados e municípios na estruturação da sua função controle interno.

 

O modelo completo em 2022 passa a ser identificado com a seguinte estrutura e macro funções:

Como já assinalado, esse modelo de Controladoria Pública representado pela estrutura da CGU serviu de molde para as estruturas de órgãos de controle interno nas esferas subnacionais. Ora batizados como Controladorias (estaduais ou municipais), ora como Auditorias-Gerais estaduais ou municipais, esses órgãos emularam, com pequenas variações, o modelo da União. Essa adesão foi amadurecendo e se sedimentando, indicando sua responsividade aos desafios das demandas públicas do Século XXI.

O viés do modelo, desde sua gênese, sempre esteve muito fortemente associado a evidenciar a reação institucional do governo federal às irregularidades administrativas, aos desvios, à fraude e à corrupção. Ainda que a SFC, braço de auditoria interna governamental, tenha histórico de importantes avaliações (termo onipresente em auditoria interna) sobre a gestão de políticas públicas e de processos críticos em órgãos e entidades da Administração Pública, a pauta “anticorrupção” teve certamente apelo e valor intrínseco regentes na atuação dos quase 20 anos da CGU.

A pauta “anticorrupção” mais recentemente foi aprimorada pelas abordagens de fomento e implementação de Programas de Integridade. A integridade pretende ser uma resposta institucional ao aumento da percepção da corrupção, já que é um conceito suficientemente largo para caracterizar não apenas a lógica do combate ostensivo à corrupção, mas o estabelecimento de balizas éticas (comportamentais) e de controles preventivos de riscos (numa lógica de processos), que possibilitem aos órgãos públicos fazer suas entregas com integridade.

O modelo controladoria, pela sua plasticidade, absorveu a pauta de integridade e se reinventou. Se mostrou capaz de abrigar as ações mais diretivas, inclusive aquelas derivadas da Lei anticorrupção (lei nº 12.846/2013) e toda essa pauta já citada de promoção da integridade, que rapidamente foi acoplada sinergicamente às demais macrofunções, que se reorganizaram nesse novo desenho.

Importante destacar, e a isso se propõe singelamente esse artigo, as vantagens desse desenho institucional, com funções que dialogam entre si (BRAGA;SANTOS, 2016) e que permitem interação com a população, com o gestor e com os demais órgãos que compõem uma rede pública de accountability. Trata-se de um modelo dialógico que combina:

a)    funções gerenciais, com a gestão da transparência pública e dos ritos de conflitos de interesse, por exemplo;
b)    funções de fomento à participação e controle social, com a orientação à formação e operação dos conselhos de usuários de serviços públicos;
c)    funções de auditoria (nos seus vieses de avaliação e consultoria) e de investigação de ilícitos administrativos, fraude e corrupção;
d)    funções de apuração de responsabilidades e aplicação de sanções administrativas a servidores públicos e às empresas;
e)    funções de supervisão e orientação de atividades realizadas de forma descentralizada pelas auditorias internas, ouvidorias, corregedorias e unidades de gestão da integridade que operam nos órgãos e entidades.

Esse modelo, mais que uma jabuticaba, posiciona-se como um imperativo para a boa governança. A estrutura desse padrão de controladoria pública dialoga com o modelo das três linhas (IIA,2020),  pois prevê o oferecimento direto dos serviços de auditoria interna (pela SFC), contemplando a terceira linha, mas ao mesmo tempo contempla a possibilidade de ações de estruturação, orientação e fomento das segundas  linhas, ponto de interseção que pode se conectar de forma concreta com a gestão, ao dialogar com a gestão de riscos, a promoção da integridade e o fortalecimento da transparência, servindo como referencial técnico para essas funções ligadas à noção de segunda linha do modelo do IIA.

O modelo de controladoria pública dialoga também com o estado da arte da conceituação de accountability, conforme Braga et al (2020), ao vincular a accountability horizontal as macro funções combate a corrupção, corregedoria e auditoria interna; e a accountability vertical as funções ouvidoria e prevenção a corrupção, combinando essa visão do órgão profissionalizado com a vertente democrática, como descrito por O’Donnell (1998).

Ao longo de duas décadas de muitas mudanças na função controle, e consequentemente na dimensão controle interno, o modelo de controladoria pública soube absorver as novas demandas e se tornar um mecanismo estratégico de governança dos entes públicos que o adotaram.

Assim, para além do modelo de controladoria corporativa, focada em tratamento gerencial das informações, a controladoria pública vem trilhando um caminho de amadurecimento para operar como uma espécie de “meta controle” das complexas funções do estado moderno.

Há obviamente um espaço de aprimoramento institucional e gradual amadurecimento do modelo, notadamente no que se refere à posição da controladoria pública quanto a temas que tem transversalidade e envolvem necessariamente outros importantes atores da administração pública.

Nesse sentido, temas como segurança da informação, proteção da privacidade, gerenciamento de riscos e avaliação de políticas públicas, compõem esse mosaico de “meta controle” compartilhado com outros órgãos da administração pública. A controladoria pública tem pela frente o desafio de contribuir de forma efetiva para a sistematização desses temas (ou demandas). A já comentada plasticidade do modelo sugere que tais transversalidades seguirão sendo certamente endereçadas a contento.

Mais do que uma ode ao modelo controladoria, o presente texto se propôs a registrar os avanços derivados da adoção dessa estrutura desde seu nascedouro, ressaltar  a relevância do papel da função controladoria como parte do centro de governo (4), com conexão transversal e dialógica com os gestores públicos, e posição de relevância na avaliação e no apoio à gestão dos órgãos e das políticas públicas. O lugar da controladoria no mosaico da administração pública é essencialmente republicano: espaço de accountability horizontal e vertical, diálogo, transparência e aprimoramento da gestão. E isso não é pouco.

Referências:

BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo; SANTOS, Franklin Brasil. Do paradoxo a efetividade: a controladoria pública como um instrumento de um estado mais eficiente e uma sociedade mais participativa. In: BLIACHERIENE, Ana Carla; BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo; RIBEIRO, Renato Jorge Brown (Org.). Controladoria no Setor Público. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 375-392.

BRAGA, M.; CALDEIRA, D.; SABENÇA, S. Inovação em accountability no combate à Covid-19 no Brasil: Uma análise empírica do Controle Interno. Revista da CGU, v. 12, n. 22, 2020. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/325. Acesso em: 27.Jan.2021.

IIA. Instituto de Auditores Internos. 2020. Modelo das três linhas do IIA 2020: uma atualização das três linhas de defesa. Disponível em: http://www.iabrasil.org.br. Acesso em: 27.Jan.2021.

O’DONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliarquias. In Lua Nova, nº 44. São Paulo, 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451998000200003

 

Legendas: 

(1) Auditor Federal de Finanças e Controle. Mestre em Controladoria (UFC)
(2) Auditor Federal de Finanças e Controle. Doutor em Políticas Públicas (UFRJ).
(3) Justiça seja feita, o primeiro órgão de controle interno a utilizar o nome de controladoria foi a Controladoria Geral do Município do Rio de Janeiro, criada em dezembro de 1993.
(4) De acordo com o TCU (https://portal.tcu.gov.br/governanca/governancapublica/centro-de-governo/), o centro de governo é uma instituição ou grupo de instituições que fornece apoio ao chefe do poder executivo no que se refere à coerência e coesão da totalidade da ação governamental.